quarta-feira, 20 de julho de 2011

Estação das chuvas

Conhecemo-nos na festa de uma amiga comum. Um dia, por mérito, foi chamado para exercer um alto cargo. Congratulei-o pela sua nomeação. Demos um abraço. Apertou-me os ombros com força. Percebi. Como percebi que, naquela sala enorme, nesse fim de tarde, só nós sabíamos tudo sobre todos e, ao fim e ao cabo, sobre nada. Rimos.

Agora, o verde está mais exuberante. Exibe-se. Dá-se a ver. É visto. O verde que dizem ser a cor da esperança. Mamãe velha, venha ouvir comigo/O bater da chuva lá no seu portão/É um bater de amigo/que vibra dentro do meu coração(1). Ao longe, um prédio imponente - e bonito - tirou-me um pouco do rio que cresci a ver correr dia e noite, noite e dia. Todos os dias. Mas, ainda assim, consigo distinguir a proa da popa de um navio; Os contentores, às cores, cheios do nosso cajú. Um jogo de lego, que as águas levam e trazem – tudo visto atravês desse pedaço de rio que me deixaram.

- E então, estás bom? – Não, eu sou bom!
Porra, que dia! Achas que chove? – Que chova! Desde que não sejam pregos. Tempo de merda, resmungámos. E concordámos. Choveu, e bem. As ruas permaneciam silenciosas e desertas, mesmo os táxis recolheram. Nem um vulto para amostra. Mas de repente voltaram os carros. Uma excursão autêntica. O ar condicionado foi substituido pela aragem fresca que emana da terra.

- Tudo o que vislumbro tem um cheiro a passado recente. Não, não cheira a pólvora. Cheira a terra. Vermelha e grossa e lamacenta. Um atoleiro este, onde nos vimos enfiados. E as águas que correm apressadas, por entre sacos, entulho e todo o tipo de despojos, dentro de um esgoto largo o suficiente para acomodar um ser humano adulto, deixado a céu aberto – ‘por uma ONG’, dizem os mais inconformados, já mataram tanta gente... - Tenho medo, e nojo, do destino deste povo – o destino é essa linha que percorre as mãos, a que os videntes prevêem mas são incapazes de... prever.

- São precisos homens, ainda que as almas estejam em guerra...barafustou, quase imperceptível. Fomos andando. Já em casa, puxa de um livro da estante e retira umas folhas A4, dobradas e bem vincadas. - O tempo faz das suas. Pintou as folhas de um amarelo estranho. - Sim, e esse amarelo já se aproxima do desespero, fiz notar. Então, como tinha electricidade nessa noite, dispôs-se a ler-me poesia. Vinicius de Moraes.

Procura-se um amigo para para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Precisa-se de um amigo para não enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira da estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim. Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para se ter a consciência de que ainda se vive.


A cadência com que leu esta passagem comoveu-me. É a minha eterna sensibilidade. E, também, porque sobre os valores da amizade, da sinceridade e da honestidade nunca discordámos.

Venha comigo mamãe velha, venha/Recobre a força e chegue-se ao portão/A chuva amiga já falou mantenha e bate dentro do meu coração(2)

Alguém disse um dia que só tem histórias na vida quem as sabe contar. AAS

- M/N: (1 e 2) - De uma poesia de Amílcar Cabral